quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

E foi assim...

"Na verdade, Osíris pensava que bem poderia reinar sozinho e, certa noite, no terraço de seu palácio de ouro, assim o disse a Ísis. Ela, porém, riu-se. "Sem mim - respondeu - serias o mais desgraçado do universo. Nossa felicidade provém de sermos um e, ao mesmo tempo, diferentes". Osíris contestou e ela desafiou-o: "Cria então um ente que, sozinho, possa ser feliz!" E foi então que Osíris criou o homem. Criou a mais bela criatura do universo. Para a sua morada, fez a terra, com água e rocha, rios e montanhas, ervas e árvores, aves e quadrúpedes, insetos e répteis. Mostrou-o orgulhosamente a Ísis e disse: "Quem pode deixar de ser feliz em meio a tanta variedade?" Ísis continuou a a tecer calmamente, no terraço de seu palácio, sem nada replicar. E, por certo, o homem não se sentiu feliz. Passada a curiosidade pela variedade que o cercava, tornou-se melacólico e pensativo. "Tua criação se aborrece", disse Ísis zombeteiramente. Osíris, irritado, voltou a trabalhar. "Não lhe dei cores", disse. E espalhou pela terra, que até então era de um frio cinzento uniforme, toda a magia do colorido. Tingiram-se os montes de púrpura, tornaram-se verdes as árvores e as ervas das planícies, os mares se enriqueceram de azul e as flores se abriram em infinita variedade de matizes. "Venci!", exclamou Osíris, e assim de fato parecia ser, pois uma nova alegria de apoderou do coração do homem, diante de tantas maravilhas. Ísis se limitou a sorrir. Ela bem sabia que não era bastante a variedade. E, realmente, a visão daquelas belezas acabou por fatigar o homem, que voltou a se mostrar melacólico e deprimido. Então, mais uma vez, a vontade criadora de Osíris entrou em ação e mesmo Ísis chegou a entusiasmar-se. É que, até ali, tudo na terra havia sido perfeito quanto à forma, mas destituído de movimento. E agora tudo começou a mover-se. Esvoaçaram alegremente as aves, caminharam todos os animais por entre as matas, farfalharam as verdes copas das árvores, correram os rios para o mar, agitaram-se os oceanos em ondas espumejantes, sopraram os ventos e as nuvens deslizaram no céu. E o homem tornou-se a erguer-se, feliz como uma criança, para correr entre todas as coisas moventes. "Vês?", disse Osíris a Ísis. "Não necessito de ti". Ela tornou a sorrir respondendo: "Esperemos". E, de fato, pouco depois, cansou-se o homem de ver os pássaros em vôo, os animais em marcha, o ondular das vagas e o sopro dos ventos. Tudo aquilo só aumentava a sua amargura interior, o sentimento profundo de sua solidão. Irritou-se Osíris e tornou a sacudir o universo com o seu poder criador. E surgiu o som, fazendo o homem erguer-se, em encantada surpresa, ante o murmúrio dos ventos, o variegado canto das aves, o rugir das feras, o escachoar das cascatas, o frêmito do mar, a imensa orquestra do mundo. E o homem, possuído de alegria, juntou sua voz à canção incessante de todas as coisas. Mas o tempo levou o homem a fatigar-se de tudo aquilo. De novo a infelicidade se apoderou dele, ainda mais forte e intensa do que antes. "Senhor", disse Ísis, "tua criatura está morrendo. Deixa que eu a ajude". Osíris nada respondeu, mas também nada fez. Já havia dado tudo ao homem: lar, forma, cor, variedade, som. Ísis terminou, então, o tecido que fazia e deixou-o cair junto ao homem. Este sobressalltou-se, na melancólica meditação em que se abismava, ao leve ruído do fino pano que tombara. E viu que este se transformava em uma mulher. Ela deu-lhe a mão, e partiram juntos a percorrer o mundo. E nunca mais o homem se sentiu inteiramente miserável. Talvez também não fosse inteiramente feliz. Mas o fato é que jamais pode ficar enfadado sem remédio."


[A história da criação do homem e do universo segundo Osíris e Ísis.]

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